Malária
Registrada nos municípios da região montanhosa do Espírito Santo desde 1976, a malária residual de sistema de Mata Atlântica de região extra-Amazônica, conhecida pelas autoridades de saúde locais simplesmente como “malária autóctone” ou “autoctonia”, tem causado preocupação aos órgãos competentes. Esta preocupação tem diversas justificativas. Em primeiro lugar, a ocorrência isolada de casos sem que estejam explícitos os elementos habituais da cadeia de transmissão, como presença de outros indivíduos doentes e de vetores de reconhecida competência e capacidade, traz incertezas relativas a quais procedimentos de manejo e controle seriam mais adequados. Como o Espírito Santo não é considerado um estado com ocorrência endêmica de malária, os casos autóctones secundários a um introdutor são habitualmente tratados e acompanhados, sendo o ambiente de sua ocorrência manejado com medidas de combate aos vetores e busca ativa de casos. No caso da malária que ocorre na região montanhosa, tais medidas não parecem ser revestidas de uma relação custo/benefício favorável, uma vez que não se identificam vetores conhecidos e a busca ativa de casos mostra-se sistematicamente infrutífera. Neste contexto, é anseio das autoridades de saúde do estado conhecer as peculiaridades da cadeia de transmissão, de modo a estabelecer a melhor maneira de intervir.
Uma segunda justificativa para a preocupação do corpo técnico da Secretaria de Estado da Saúde, no Espírito Santo, diz respeito à economia do estado. A malária autóctone incide em municípios de reconhecido potencial turístico, o qual vem sendo desenvolvido progressivamente ao longo dos anos. A ocorrência constante de casos de uma doença endêmica à qual é tradicionalmente imputado um alto potencial de morbidade e mortalidade, embora este não seja o caso na região, pode comprometer intensamente as atividades turísticas, acarretando reveses econômicos óbvios.
Uma terceira justificativa diz respeito a aspectos relacionados à saúde coletiva. Apesar de, aparentemente, os casos de malária não configurarem o possível risco de surto, a Secretaria de Estado da Saúde deseja saber se este comportamento pode sofrer mudanças. Da mesma forma, teme a possibilidade de que a apresentação clínica dos casos incidentes comece a ser revestida por características de gravidade, com risco potencial de vida. Nestas circunstâncias, mais uma vez, considera necessário estabelecer, com base no conhecimento das peculiaridades da cadeia de transmissão, alguma medida de ordem preventiva.
A preocupação das autoridades de saúde transformou-se em desejo de investigar a endemia ainda quando o controle da mesma era de competência da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), nos idos de 1998. Naquela ocasião, a gerência local da FUNASA solicitou auxílio ao Ministério da Saúde, que, por sua vez, incumbiu a Doutora Mércia Arruda de proceder à investigação. Desafortunadamente, diversos problemas de ordem técnica impediram que a investigação fosse levada a efeito, não tendo a mesma progredido além de sua fase preliminar. Com a descentralização das Ações de Saúde, ao serem transferidas as atividades de Vigilância em Saúde para o âmbito dos estados e municípios, a Secretaria de Estado da Saúde assumiu o interesse manifestado pela FUNASA de promover a investigação dos aspectos epidemiológicos que envolvem a malária autóctone, procurando, desta feita, o auxílio da Universidade Federal do Espírito Santo. Foi assim que, no ano 2000, começamos entendimentos no sentido de estabelecer um Convênio de Cooperação Técnica.
Desde então, quatro estudos de natureza epidemiológica foram realizados e um encontra-se em andamento. Em todos eles, contamos com a colaboração da equipe do laboratório de Protozoologia do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo e da equipe de entomologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo. No primeiro estudo, buscamos a caracterização epidemiológica da cadeia de transmissão da referida endemia. Os resultados serviram para a Tese de Doutorado de Crispim Cerutti Junior (disponível no endereço http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5134/tde-21062007-151653/ ) e foram publicados no periódico Malaria Journal, de livre acesso no endereço www.malariajournal.com/content/pdf/1475-2875-6-33.pdf . Tais resultados permitiram definir a etiologia da malária (Plasmodium vivax e Plasmodium malariae), apontaram para a transmissão essencialmente extra-domiciliar e forneceram argumentos para a hipótese da existência de um reservatório não-humano, representado pelos símios, para os parasitos circulantes.
Em um segundo estudo, fizemos a captura sistemática dos anofelinos, ao longo da noite, durante dois anos, em três ambientes (copa das árvores, solo da floresta e campo aberto) da localidade de Valsugana Velha, no município de Santa Tereza. Tal estudo serviu de base para a dissertação de mestrado de Helder Ricas Rezende, cuja publicação encontra-se no endereço http://www.scielo.br/pdf/ne/v38n2/v38n2a17.pdf. Concomitantemente, um estudo da mesma natureza, porém de dimensões menores, também foi conduzido em outra localidade do mesmo município por Sonia Wenceslau Flores Rodrigues, sendo argumento de sua dissertação de mestrado. A captura sistemática dos anofelinos permitiu observar que o Anopheles cruzii, cuja antropofilia lhe confere a maior probabilidade de atuação como vetor, é essencialmente acrodendrofílico, tendo sido capturados na copa das árvores 90% dos espécimes. Embora outros vetores do subgênero Nyssorhynchus tivessem sido encontrados infectados, a marcante presença do A. cruzii nas copas das árvores reforça o argumento da transmissão em um contexto de zoonose.
O quarto estudo foi constituído pela captura sistemática de anofelinos em duas áreas, uma endêmica para malária (município de Santa Tereza) e outra indene (município de Conceição de Castelo). Duas equipes realizaram capturas simultaneamente em três localidades da área endêmica e em três da área indene, com periodicidade trimestral (fevereiro, maio, agosto e novembro), ao longo de um ano (2008) e em diferentes níveis (copa das árvores e solo) de dois ambientes (interior e margem da mata). Também foram feitas capturas em campo aberto e em ritmo horário com isca luminosa (armadilha de Shannon). O objetivo do estudo foi verificar o eventual predomínio diferencial de alguma espécie que possa estar implicada na transmissão. Os resultados do mesmo ainda estão sob análise.
O estudo em andamento diz respeito à investigação da malária símia na região. Visa a determinar a freqüência e a etiologia da malária nesses primatas e consiste na captura de espécimes de Alouatta guariba mediante o uso de dardos anestésicos e coleta de seu sangue para os exames necessários. Também é nosso objetivo a caracterização molecular desses parasitas e o estabelecimento de sua identidade com os parasitos humanos.
Equipe envolvida:
Unidade de Medicina Tropical:
- Crispim Cerutti Junior.
- Helder Ricas Rezende.
- Aloísio Falqueto.
- Gabriel Comarella Pagotto.
- Luiz Alberto Dias Santos.
- Fabrício Tosta das Neves.
Projeto Muriqui:
- Sérgio Lucena Mendes.
- Rogério Ribeiro dos Santos.
Secretaria do Estado da Saúde:
- Altemar Rodrigues Marques
- Helder Ricas Rezende.
- Arnídio Fernandes Coutinho.
- Augusto Marchon Zago.
- Carlos Caucho.
- Edmar Thomaz.
- Edmilso Vieira da Hora.
- Evandro Tamanini Lopes.
- Izaías Albino da Rocha.
- João Batista Pereira Pinto.
- Luciano Lyrio Salles.
Instituto de Medicina Tropical de São Paulo:
- Rosely dos Santos Malafronte.
- Ana Maria Ribeiro de Castro Duarte.
- Marcos Boulos.
- Tasciane Yamazaki.
Faculdade de Saúde Pública de São Paulo:
- Delsio Natal.
- Maria Anice Mureb Sallum.
- Paulo Roberto Urbinatti.